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terça-feira, 6 de junho de 2017

A GERAÇÃO DE PRAGAS

Parte 7

                                A DECISÃO DE CALUS

E.5.: 1781, 2/1 OUT.
Algum lugar ao leste de Anárquia




O sol já se punha há algum tempo. O cheiro do assado recendia no local. Era um cheiro bom apesar de não ter sido temperado. Ao lado da cama, sentado num toco velho, Calus velava Daro na cama sem consciência enquanto pensava no que diria a ele quando acordasse. Ainda estaria sem memória? Ou seria só um efeito colateral de dois dias desmaiado sem se alimentar? Vai saber! O fato é que tinha que pensar em algo para falar com ele em ambos os casos. A idéia de apagar tudo de ruim que havia acontecido não era tão ruim, mas será que seria certo preencher a história de outra pessoa com uma mentira? Seja lá o que fosse acontecer era melhor que acontecesse depois do jantar.
— Melhor deixar esses dois maiores pra você não é mesmo? Depois de quase três dias desacordado e comer nada, deve estar faminto. –Falou consigo mesmo afastando um pouco os peixes do fogo, mas deixando perto o suficiente pra mantê-los aquecidos.
Enquanto comia, a memória da prisão veio à tona. As refeições intragáveis; a escuridão; as surras de vez em quando só pra animar os guardas; as conversas com Doms, a sim! As conversas com Doms eram sempre bem vindas (fora quando eram sermões), ele sempre sabia o que falar, contava histórias, lugares por onde passou, e fazia os garotos refletirem e imaginarem a vida fora de lá, quase como se já planejasse proporcionar essa liberdade a eles. Agora tudo o que restara era a lembrança do velho. O coração palpitou com o sentimento de perda, que levaram algumas lagrimas aos olhos. Sem se dar conta, sua feição foi mudando, o ódio foi tomando conta do vazio deixado por Doms, e a culpa recaiu sobre o mercado de escravos, que os mantivera cativos e havia levado a morte do homem que era modelo para os garotos. “Vou destruir aquele lugar por você Doms”, Pensou. Antes que pudesse pensar em mais besteiras e envenenar ainda mais seu coração, vira Daro começando a despertar.
— Daro, tudo bem? – Questionou Calus preocupado.
— Quem é você? – Retrucou Daro se encolhendo para o canto da cama.
—Seu irmão... Calus. – Respondeu ainda ríspido com a memória relembrada.
— Meu irmão? – repetiu confuso.
— Sim... Seu irmão... Não se lembra de mim? – Perguntou se amolecendo um pouco.
— Desculpe. Não me lembro de nada além de uns borrões e de ser carregado pela floresta. – Respondeu se conformando um pouco com a situação. — O que aconteceu? – Questionou curioso pra saber o que o levara a esse estado.
— Amanhã eu te contarei tudo. Hoje você precisa comer. Há três dias que você não come nada. Melhor se alimentar. Tome... Coma. – Proferiu entregando os peixes ao irmão faminto. Daro assentiu com a cabeça e devorou a comida com avidez. — Vá dormir quando acabar, teremos um dia longo amanhã. – Falou Calus se virando para o outro lado para dormir. Daro terminou de comer e também se rendeu ao cansaço.
  
...

A luz quem entrava pelo buraco no telhado começou a incomodar o sono de Calus, que franziu o sobrolho ao despertar. A essa altura Daro já estava sentado na cama de palha a observar o irmão.
— O que foi que aconteceu comigo? O que aconteceu com a nossa família? Onde estamos? Somos mesmo irmãos? – desferiu a chuva de perguntas um pouco agoniado por não se lembrar de nada, e também ávido por conhecer a própria história.
— Uma coisa de cada vez. – respondeu com um bocejo – Primeiro o mais importante, você está se sentindo bem? – perguntou apontando para a cabeça de Daro.­
— Sim. Agora me conta tudo. – Daro já não estava mais se contendo.
— Vou te contar tudo no caminho. – Disse se levantando e recolhendo o que precisava.
— No caminho? Pra onde? A gente não mora aqui? – Soltou mais uma rajada de perguntas.
— Já ficamos aqui tempo de mais. Você já está melhor, então é hora de sairmos daqui. E pare com essas perguntas. Vou te contar tudo, mas primeiro vamos sair daqui o quanto antes. – proferiu Calus com ar mais sério de liderança. — Anda logo garoto, não fique aí parado me olhando, já te carreguei de mais, é hora de você fazer alguma coisa não é! – vociferou jogando a trouxa de itens que recolhera em cima de Daro – Não fique pra trás, ou vai perder as suas respostas, e eu não vou repetir. – Disse enquanto vasculhava os itens que iam precisar. Daro relutou por alguns instantes, mas depois de receber um olhar de repreensão, se conformou em seguir Calus porta a fora. Mesmo sem se lembrar dele, era melhor sua companhia e a esperança de ter algumas poucas respostas do que ficar sozinho e sem resposta nenhuma.
Daro caminhou por horas em silêncio atrás de Calus. Desde que partiram da velha cabana, não deram uma palavra sequer, embora Calus tivesse dito que contaria tudo a Daro. Apesar da frustração de ainda não ter nenhuma resposta Daro sentia certa segurança com a presença de Calus.
Calus andava com cautela em meio à floresta, pois sabia que mesmo já estando a uma distância considerável de seu antigo cativeiro, o perigo ainda não era nulo, podia haver animais; caçadores; bandidos; rebeldes; ou pior, algum rastreador do mercado de escravos. Os rastreadores eram homens incríveis, capazes de acertar o olho de um veado em meio a um nevoeiro espesso; de encontrar um pardal tendo como pista apenas a gaiola de onde saiu; de farejar com mais precisão que um lobo faminto; e por fim, detinham uma habilidade incrível com a espada. Eram capazes de decapitar oponentes três vezes maiores que eles antes mesmo que pudesse revidar. Era de fato um milagre ainda não terem sido pegos. “O que terá acontecido pra que não tenham vindo a nossa procura ainda? Doms” pensou.  Ainda tinha a questão de Daro, o que contar a ele? Já havia se passado algumas horas desde que começaram a caminhada e ainda não tinha nenhuma idéia do que diria ao irmão. Que eram escravos e à custa da morte de um amigo conseguiram fugir? Ou que vira os pais morrerem a sua frente quando criança? Não! O garoto tinha recebido uma chance de ter uma memória melhor, mais feliz, ou pelo menos, menos traumatizante que a vida que tivera.
— Daro. – rompeu o silêncio ainda sem olhar pra trás – Ouça bem. Somos somente eu e você agora. Somos órfãos, não temos parentes, não temos casa, não temos para onde voltar. Só temos um ao outro, e só temos uma direção a seguir... Pra frente. – Não contara nenhuma mentira, mas também não dissera a verdade.
— O que aconteceu comigo? – Questionou compreendendo um pouco a situação.
— Eu não fui forte o suficiente pra te proteger. – a voz se extinguiu por um instante – Me desculpe. – Calus parou entalado com as palavras — Eu vou ficar forte, muito forte, e quando eu conseguir isso, vou ficar ainda mais forte, e ninguém nunca mais vai encostar um dedo em você. – Completou com a voz chorosa. Embora fosse o mais velho, ainda era uma criança. — E quando você estiver em segurança, vou voltar e acabar com aquele maldito lugar. – Pensou franzindo o sobrolho com um olhar de puro ódio. — Irmãos protegem um ao outro... Custe o que custar. – finalizou abrandando a voz pra não transparecer suas emoções.
— Então eu também tenho que ficar muito forte né irmão? – afirmou Daro concordando com a explicação recebida – Mas como vamos ficar fortes? – questionou.
— Primeiro, precisamos achar algum vilarejo que tenha uma biblioteca. – Respondeu categórico.
— Biblioteca? – questionou confuso enquanto retirava a teia de aranha que grudara em seu braço.
— Tenho um livro só que não sei ler. Por isso precisamos achar uma biblioteca e conseguir algum daqueles velhos pra ensinar a gente. –Respondeu mais uma vez categórico dando uma olhadinha de soslaio para Daro.
— Não precisa de biblioteca pra isso garoto. – Veio a voz grave e calma.



*E.5.: Era dos 5
*1781: ano
*2/1: 2° dia da 1° quinzena

*OUT.: outubro

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