Parte 7
A DECISÃO DE CALUS
E.5.: 1781, 2/1 OUT.
Algum lugar ao leste de Anárquia
O sol já se punha há algum tempo. O cheiro do
assado recendia no local. Era um cheiro bom apesar de não ter sido temperado.
Ao lado da cama, sentado num toco velho, Calus velava Daro na cama sem
consciência enquanto pensava no que diria a ele quando acordasse. Ainda estaria
sem memória? Ou seria só um efeito colateral de dois dias desmaiado sem se
alimentar? Vai saber! O fato é que tinha que pensar em algo para falar com ele
em ambos os casos. A idéia de apagar tudo de ruim que havia acontecido não era
tão ruim, mas será que seria certo preencher a história de outra pessoa com uma
mentira? Seja lá o que fosse acontecer era melhor que acontecesse depois do
jantar.
— Melhor deixar esses dois maiores pra você
não é mesmo? Depois de quase três dias desacordado e comer nada, deve estar
faminto. –Falou consigo mesmo afastando um pouco os peixes do fogo, mas
deixando perto o suficiente pra mantê-los aquecidos.
Enquanto comia, a memória da prisão veio à
tona. As refeições intragáveis; a escuridão; as surras de vez em quando só pra
animar os guardas; as conversas com Doms, a sim! As conversas com Doms eram
sempre bem vindas (fora quando eram sermões), ele sempre sabia o que falar,
contava histórias, lugares por onde passou, e fazia os garotos refletirem e
imaginarem a vida fora de lá, quase como se já planejasse proporcionar essa
liberdade a eles. Agora tudo o que restara era a lembrança do velho. O coração
palpitou com o sentimento de perda, que levaram algumas lagrimas aos olhos. Sem
se dar conta, sua feição foi mudando, o ódio foi tomando conta do vazio deixado
por Doms, e a culpa recaiu sobre o mercado de escravos, que os mantivera
cativos e havia levado a morte do homem que era modelo para os garotos. “Vou
destruir aquele lugar por você Doms”, Pensou. Antes que pudesse pensar em mais
besteiras e envenenar ainda mais seu coração, vira Daro começando a despertar.
— Daro, tudo bem? – Questionou Calus
preocupado.
— Quem é você? – Retrucou Daro se encolhendo
para o canto da cama.
—Seu irmão... Calus. – Respondeu ainda ríspido
com a memória relembrada.
— Meu irmão? – repetiu confuso.
— Sim... Seu irmão... Não se lembra de mim? –
Perguntou se amolecendo um pouco.
— Desculpe. Não me lembro de nada além de uns
borrões e de ser carregado pela floresta. – Respondeu se conformando um pouco
com a situação. — O que aconteceu? – Questionou curioso pra saber o que o
levara a esse estado.
— Amanhã eu te contarei tudo. Hoje você precisa
comer. Há três dias que você não come nada. Melhor se alimentar. Tome... Coma.
– Proferiu entregando os peixes ao irmão faminto. Daro assentiu com a cabeça e
devorou a comida com avidez. — Vá dormir quando acabar, teremos um dia longo
amanhã. – Falou Calus se virando para o outro lado para dormir. Daro terminou
de comer e também se rendeu ao cansaço.
...
A luz quem entrava pelo buraco no telhado
começou a incomodar o sono de Calus, que franziu o sobrolho ao despertar. A
essa altura Daro já estava sentado na cama de palha a observar o irmão.
— O que foi que aconteceu comigo? O que
aconteceu com a nossa família? Onde estamos? Somos mesmo irmãos? – desferiu a
chuva de perguntas um pouco agoniado por não se lembrar de nada, e também ávido
por conhecer a própria história.
— Uma coisa de cada vez. – respondeu com um
bocejo – Primeiro o mais importante, você está se sentindo bem? – perguntou
apontando para a cabeça de Daro.
— Sim. Agora me conta tudo. – Daro já não
estava mais se contendo.
— Vou te contar tudo no caminho. – Disse se
levantando e recolhendo o que precisava.
— No caminho? Pra onde? A gente não mora aqui?
– Soltou mais uma rajada de perguntas.
— Já ficamos aqui tempo de mais. Você já está
melhor, então é hora de sairmos daqui. E pare com essas perguntas. Vou te
contar tudo, mas primeiro vamos sair daqui o quanto antes. – proferiu Calus com
ar mais sério de liderança. — Anda logo garoto, não fique aí parado me olhando,
já te carreguei de mais, é hora de você fazer alguma coisa não é! – vociferou
jogando a trouxa de itens que recolhera em cima de Daro – Não fique pra trás,
ou vai perder as suas respostas, e eu não vou repetir. – Disse enquanto
vasculhava os itens que iam precisar. Daro relutou por alguns instantes, mas
depois de receber um olhar de repreensão, se conformou em seguir Calus porta a
fora. Mesmo sem se lembrar dele, era melhor sua companhia e a esperança de ter
algumas poucas respostas do que ficar sozinho e sem resposta nenhuma.
Daro caminhou por horas
em silêncio atrás de Calus. Desde que partiram da velha cabana, não deram uma
palavra sequer, embora Calus tivesse dito que contaria tudo a Daro. Apesar da
frustração de ainda não ter nenhuma resposta Daro sentia certa segurança com a
presença de Calus.
Calus andava com cautela
em meio à floresta, pois sabia que mesmo já estando a uma distância
considerável de seu antigo cativeiro, o perigo ainda não era nulo, podia haver
animais; caçadores; bandidos; rebeldes; ou pior, algum rastreador do mercado de
escravos. Os rastreadores eram homens incríveis, capazes de acertar o olho de
um veado em meio a um nevoeiro espesso; de encontrar um pardal tendo como pista
apenas a gaiola de onde saiu; de farejar com mais precisão que um lobo faminto;
e por fim, detinham uma habilidade incrível com a espada. Eram capazes de
decapitar oponentes três vezes maiores que eles antes mesmo que pudesse
revidar. Era de fato um milagre ainda não terem sido pegos. “O que terá
acontecido pra que não tenham vindo a nossa procura ainda? Doms” pensou. Ainda tinha a questão de Daro, o que contar a
ele? Já havia se passado algumas horas desde que começaram a caminhada e ainda
não tinha nenhuma idéia do que diria ao irmão. Que eram escravos e à custa da
morte de um amigo conseguiram fugir? Ou que vira os pais morrerem a sua frente
quando criança? Não! O garoto tinha recebido uma chance de ter uma memória
melhor, mais feliz, ou pelo menos, menos traumatizante que a vida que tivera.
— Daro. – rompeu o
silêncio ainda sem olhar pra trás – Ouça bem. Somos somente eu e você agora.
Somos órfãos, não temos parentes, não temos casa, não temos para onde voltar.
Só temos um ao outro, e só temos uma direção a seguir... Pra frente. – Não
contara nenhuma mentira, mas também não dissera a verdade.
— O que aconteceu comigo?
– Questionou compreendendo um pouco a situação.
— Eu não fui forte o
suficiente pra te proteger. – a voz se extinguiu por um instante – Me desculpe.
– Calus parou entalado com as palavras — Eu vou ficar forte, muito forte, e
quando eu conseguir isso, vou ficar ainda mais forte, e ninguém nunca mais vai
encostar um dedo em você. – Completou com a voz chorosa. Embora fosse o mais
velho, ainda era uma criança. — E quando você estiver em segurança, vou voltar
e acabar com aquele maldito lugar. – Pensou franzindo o sobrolho com um olhar
de puro ódio. — Irmãos protegem um ao outro... Custe o que custar. – finalizou
abrandando a voz pra não transparecer suas emoções.
— Então eu também tenho
que ficar muito forte né irmão? – afirmou Daro concordando com a explicação
recebida – Mas como vamos ficar fortes? – questionou.
— Primeiro, precisamos
achar algum vilarejo que tenha uma biblioteca. – Respondeu categórico.
— Biblioteca? –
questionou confuso enquanto retirava a teia de aranha que grudara em seu braço.
— Tenho um livro só que
não sei ler. Por isso precisamos achar uma biblioteca e conseguir algum
daqueles velhos pra ensinar a gente. –Respondeu mais uma vez categórico dando
uma olhadinha de soslaio para Daro.
— Não precisa de
biblioteca pra isso garoto. – Veio a voz grave e calma.
*E.5.:
Era dos 5
*1781:
ano
*2/1:
2° dia da 1° quinzena
*OUT.:
outubro
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