Parte 8
O TESTE DE TARAM
E.5.: 1781,3 /1 OUT.
Algum lugar ao leste de Anárquia
Calus sacou a faca de sua
cinta se colocando a frente de Daro. Com uma mão segurava o irmão atrás de si e
com a outra mantinha se em guarda.
— Quem está aí? – Gritou Calus.
“Rastreadores? Não. Se fosse já estaríamos mortos ou algemados. Então quem?”
pensou tentando raciocinar quem estaria os seguindo. — Apareça. – Ordenou num
blefe.
— Eu sempre estive a
vista garoto. Você é que não quis me enxergar. – Respondeu mais uma vez a voz
grave com uma calma que emanava confiança. Um vulto começou a tomar forma até
se emoldurar num homem de capa e capuz pairando a alguns centímetros do chão. O
homem tirou o capuz revelando o rosto velho porem rígido. Os cabelos eram tão
brancos quanto a neve, as sobrancelhas eram grossas e despontadas para cima nas
extremidades, fazendo o ficar ainda mais firme e imponente.
— Quem é você? –
perguntou cauteloso – O que quer de nós? Não temos nada! – Tratou de explicar.
— Muitas perguntas pra
uma criança. – o mago respondeu com a mesma calma e confiança – Vamos às
respostas. Ao final, farei uma pergunta, e caso a resposta não me satisfaça,
matarei os dois, ou... – deu uma pausa sugestiva, e prosseguiu – Bem... Vamos
descobrir. – Finalizou com um sorriso maldoso.
— Não vou deixar que
encoste um só dedo nele. – Vociferou Calus trincando os dentes de ira.
— Primeiro! – exclamou o
mago ignorando a
ameaça de Calus – Meu
nome é Taram C. Knafs. Segundo. – pontuou – Não desejo nada de vocês, só quero
o que me pertence de volta. – deu mais uma pausa como que esperasse que Calus
se pronunciasse – Agora vamos as perguntas chave do dia garotos, onde
conseguiram o meu grimório, e mais importante de tudo, onde está o meu aprendiz
cuja tolice há de ser severamente punida. – O velho pareceu irado por um
instante, mas depois voltou a mesma calma de antes.
Calus se pegou numa
encruzilhada. Mentir para o mago e tentar de alguma forma escapar dele, ou
falar a verdade e encarar a morte. O velho não parecia brincar quando disse que
os mataria. Só restou uma alternativa. Jogar o jogo com o velho.
— O senhor parece de fato
um mago muito poderoso. – assumiu uma postura de respeito tentando fazer o
velho baixar um pouco a guarda enquanto massageava seu ego – E com tal poder,
poderia ter pego o seu “grimório” de volta a qualquer momento. – Completou
guardando a faca.
— Prossiga criança. –
Proferiu o velho com um sorriso curioso despontando no rosto.
— Bom, tendo em vista o
seu empenho e paciência, acredito que o senhor queira mais uma resposta que o
satisfaça do que de fato o item que carrego. – blefou – Agora a questão é quem
o senhor está procurando? – Finalizou cauteloso.
— Muito astucioso para
uma criança, mas ainda sim muito ingênuo. – o mago deu uma pequena pausa como
se pensasse na proposta do garoto – Quem eu procuro é um aprendiz muito
estimado, que fez uma travessura enorme e precisa de uma punição. Atende pelo
nome de Dominus Dotk.
O rosto do garoto retraiu
de leve. “Doms” pensou. Tentou disfarçar, afinal, se o velho estivesse atrás de
Doms, então o tal “grimório” de que ele fala seria a única coisa que Doms
possuía e que agora estava em posse de Calus. E nesse caso, a sentença seria a
morte, pois a resposta não o satisfaria, já que Doms estava morto.
— Caso tivesse que
escolher... – engoliu a seco – O que o senhor escolheria como prioridade,
reaver o item perdido, ou punir o responsável pela perda? – Questionou tentando
extrair do velho alguma saída para a situação.
— Tanto um quanto o outro
são de igual valia, tendo em vista que sem o item não terei prova para puni-lo,
e sem o culpado terei alguém impune a solta cuja culpa de seus atos recai sobre
seu mestre.– proferiu o mago, com uma carga de culpa na voz. Seu rosto deixou
transparecer tristeza e remorso, rapidamente voltando à rigidez de antes, mas
não suficiente para escapar da percepção aguçada de Daro.
— Sinto muito senhor, mas
não terá o que procura. Não tenho como lhe dar o que não tenho. – Disse Calus com
o temor do que viria a seguir.
— De fato. – o mago
assentiu alisando a barba farta com a mão direita — Mas não me tome por tolo
criança. O grimório dentro de sua camisa chama pelo dono, e a aura de meu
discípulo ainda paira sobre vocês. Então devolva o que me pertence e diga onde
está Dominus Dotk.
— Agora fodeu... É o
livro de Doms. – Pensou Calus pondo a mão sobre o peito segurando o livro. A
única lembrança de Doms, e o velhote a queria.
— Não me interessa se
você é um mago poderoso ou sei lá o que. – disse Calus de cabeça baixa
apertando a faca ainda mais forte – Foi um presente do homem que salvou as
nossas vidas. E se eu tiver que dar a minha vida para protegê-lo, eu darei. –
disse quase deixando as lagrimas escorrerem com a lembrança de Doms tão vivida
que quase podia sentir o cheiro da cela – Se você quiser ficar com ele, vai ter
que duelar comigo. Só deixe meu irmão fora disso. – Finalizou fitando o velho
com um olhar determinado.
— Já conversamos de mais
criança. Embora tenha me entretido e me intrigado com sua audácia, temo que sua
proposta tenha que ser recusada. – o velho pousou os pés no chão e abaixou a
cabeça como se lamentasse a proposta do garoto por um instante, mas logo
prosseguiu – Façamos um trato então criança. Duelaremos como queira. Caso
vença, lhe deixo ficar com meu grimório e nem mesmo se lembrará de ter me
encontrado, todavia, se eu vencer... – deu uma pausa dramática – Se eu vencer,
me devolverá meu bem e me contará toda a sua história. – Finalizou com alisando
a barba e fitando-o.
— Aceito. – Respondeu sem
pestanejar.
— Hahaha... – Riu o velho
freneticamente por um instante. — De fato, um achado. – Completou o mago.
— Eu também vou lutar. –
veio a voz de Daro até então mero expectador de toda aquela cena. Saio de traz
de Calus se posicionando lado a lado com o irmão – Se você vai lutar, eu também
vou. – olhou para Calus e finalizou – “irmãos protegem um ao outro, custe o que
custar” não é?
— Que assim seja. – Disse
o velho enquanto examinava Daro do dedão do pé até o último fio de cabelo.
O mago tirou a capa,
revelando um corpo tão em forma que deixaria muitos jovens com inveja e muitas
mulheres excitadas. O homem aparentava ter uns cinqüenta e poucos. Faltava-lhe
o braço esquerdo de onde parecia sair uma cicatriz que invadia o pescoço do
mago. Ele estalou o dedo e uma espada prateada começou a se formar em sua
mão. Os garotos por sua vez se
mantiveram inertes. Era a primeira vez que viam alguém fazendo magia (claro que
havia Doms, mas não chegaram a ver diretamente e Daro nem disso se lembrava). O
velho então desapareceu num piscar de olhos e reapareceu com a espada tão perto
do pescoço de Calus que nem mesmo uma folha de papel passava entre eles. —
Morto! – disse, logo antes desaparecer. Reapareceu ao lado de Daro repetindo a
cena, mas antes de dizer qualquer coisa, o olhar de Daro penetrou no mago.
Poderia o garoto ter acompanhado seu movimento? Impossível.
— Morto! – disse o mago
ainda pensando no olhar do garoto – Acabou. Venci.
Tudo acabou tão rápido
que os garotos mal perceberam que foram derrotados. Os dois ficaram paralisados
por alguns segundos.
— Não é justo. –
protestou Daro – Você tinha uma espada.
— Tens um senso de
justiça distorcido criança. – inquiriu o mago fintando-o — Vocês estando em
dois, e um dos dois estando com uma faca, é justo? Já quando um velho empunha
uma espada, é injusto.
— Você é um mago. Mesmo
que estivéssemos em cem, armados até os dentes não teríamos como te enfrentar.
– Atravessou Calus.
— E mesmo assim você
escolheu me enfrentar. Por quê? – Questionou ainda mais intrigado com o garoto.
— Foi uma aposta
arriscada, mas consegui o que eu pretendia. – respondeu recolocando a faca
atravessada na cinta.
— Divirta-me com a
explicação dessa afirmação criança. – Proferiu o mago assumindo agora uma
postura de um professor que avalia o aluno. Os olhos e ouvidos totalmente
concentrados em Calus.
— Quando você apareceu,
eu realmente fiquei com medo, pois não sabia quem era, nem o que queria, porém
eu já esperava que alguém aparecesse. Não há como nenhum rastreador ter sido
mandado atrás de nós e não nos ter encontrado em três dias. Só restara três
alternativas; Doms ter matado todos do mercado de escravos e não ter sobrado
ninguém pra vir atrás da gente, mas nesse caso Doms já teria nos encontrado;
simplesmente terem nos dado como mortos e por isso não terem mandado ninguém,
mas seria uma possibilidade quase nula a não ser que os estragos tivesses sido
o suficiente pra não saberem a quantidade de mortos; e por último, minha
aposta, alguém, por algum motivo estaria encobrindo a gente dos olhos dos
rastreadores, e nesse caso teria que ser alguém muito habilidoso, possivelmente
um mago, –deu uma pausa e um aceno de cabeça para o mago que repetiu o gesto
para que prosseguisse – o que me deixou intrigado até a hora em que o senhor se
revelou. Mas ainda me restava uma duvida. O que o senhor queria de nós? E foi
somente quando o senhor falou do tal grimório que eu percebi que livro que eu
carregava era o que o senhor procurava, e quem havia me dado era quem o senhor
procurava. E mesmo com sua postura rígida, o senhor não nos machucaria, estava
nos testando, não para saber como tínhamos feito para roubá-lo, já que com uma rápida
olhada o senhor pôde perceber que não teríamos como roubá-lo de seu discípulo,
mas sim para saber o motivo pelo qual fomos considerados merecedores de
recebê-lo e o que teria levado a ser necessário que seu discípulo repassar o
grimório. Estou certo? – Finalizou Calus questionando.
— De fato. – deu uma
pausa, e um suspiro de empolgação – Tudo isso em apenas alguns minutos! –
exclamou perplexo – Você conseguiu me impressionar de verdade criança.
Pouquíssimas pessoas teriam tamanha percepção. – Começo a compreender os
motivos de ele ter te entregue o grimório – pensou. — Dito que você já
compreendeu toda a situação, não preciso dizer que vi potencial em vocês tanto
quanto meu discípulo. Só resta saber se vocês querem seguir suas vidas
medíocres sem rumo e sem futuro, ou querem fazer coisas grandes e talvez entrar
pra minha coleção. – Finalizou fintando os com olhar de empolgação contida num
sorriso de canto de boca.
— Claro que sim senhor. –
Apressou-se em responder. Enfiou a mão dentro da camisa pegou o livro e se
ajoelhou de cabeça baixa o oferecendo ao mago – Faça-nos fortes, e o faremos
orgulhoso. – Completou Calus dando corda à imaginação do mago.
O mago se aproximou,
pegou o livro, se abaixou e pôs a mão no solo. Os garotos se mantiveram
inertes. O mago os fitou mais uma vez procurando sinais de hesitação, mas só
enxergou determinação nos olhos dos garotos.
— Que assim seja.
Um circulo de luz surgiu em volta dos três. Por um instante pareceu que
estavam sendo sugados para cima por uma força maior que a gravidade. Taram
fechou os olhos e murmurou alguma coisa, faíscas começaram a surgir nas
extremidades do circulo. Daro se assustou um pouco com a cena e se encostou
mais pra perto de Calus procurando por segurança. O velho deu uma olhada de
soslaio e soltou um grunhido como quem colocara muita força em algo. Num
segundo tudo se acalmou, e no outro um clarão de luz invadiu o circulo deixando
pra traz somente um circulo cheio de brasas ainda crepitantes no lugar onde
estavam.
*E.5.:
Era dos 5
*1781:
ano
*3/1:
3° dia da 1° quinzena
*OUT.:
outubro
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