Parte 6
UM FUGITIVO SEM MEMÓRIA
E.5.: 1781, 2/1 OUT.
Algum lugar ao leste
de Anárquia
Daro abriu os olhos tentando focalizar
a imagem embaçada e tremula que via de cabeça para baixo. Os braços pareciam
pêndulos de um lado para o outro. Sua cabeça latejava, e um repuxo de dor na
parte posterior da cabeça o fez franzir o sobrolho logo antes de perder a
consciência, de novo.
...
Os passos lerdos eram quase uma marcha fúnebre de cansaço, entretanto o
barulho de água correndo nas pedras o fez acelerar um pouco. Calus havia
carregado Daro nos ombros muito mais do que o seu corpo podia suportar, e mesmo
sedento para matar sua sede, ainda achou forças para ajeitar Daro no chão com
delicadeza, escorando-o em uma arvore a beira d’água. O jovem enfiou a
cara no riacho como se fosse lavar sua canseira e revalidar suas forças. O suor
em seu corpo o havia molhado mais que a própria água. O sol já se punha, e a
batalha estava a léguas dali. Calus se arrastou com o restinho de fôlego que
lhe restava até Daro, e se sentou ao seu lado, escorando as costas cansadas na
arvore.
— Estamos livres! – disse
olhando para Daro desmaiado enquanto massageava o ombro – Livres. Irmão. – Finalizou
enquanto fechava os olhos e se deixava relaxar, e por fim adormecer.
...
Calus voltava com alguns peixes pendurados num graveto que atravessava
suas guelras, quando viu que a portinhola da cabana estava aberta. Ele largou
os peixes no chão devagar e puxou uma pequena faca da cintura, se colocando em
alerta. Esgueirou-se pela lateral do casebre atento a qualquer movimento.
Espionou para dentro por um buraco na parede para se certificar da localização
do inimigo. Pulou a frente da porta preparado para o combate, mas o susto veio
justamente por não ter ninguém lá dentro. Exatamente! Ninguém.
— Droga, cadê você Daro? – deixou escapar entre os dentes – Pelo menos
você bebeu a água! – Exclamou com um sorriso de canto de boca.
Calus começou a examinar o chão com pericia de caçador e logo achou um
rastro. — Pra lá! – Começou a correr na direção do sinal imediatamente. Depois
de alguns minutos de corrida, finalmente avistou o garoto em disparada, em meio
à floresta.
— Daroooo... Daroooo... Sou eu...
Espera... – Gritou Calus tentando fazer o garoto Cessar a corrida, sem sucesso.
O jovem sequer olhou para traz. Continuou correndo, quando escorregou em uma
pedra e foi ao chão. Antes de conseguir se levantar, Calus já o havia
alcançado.
— Me solte. Socoroooo. – Gritou desesperado esmurrando o peito de Calus
que o tentava controlar.
— Daro... Calma... Calma... Sou eu, Calus. – Tentando fazer Daro voltar
a si.
— Eu não sei quem você é... Me solte. – Grunhiu se esforçando pra se
soltar.
— Sou eu... Calus... Seu irmão. – Disse.
— Eu não... Esqueceria de um... Irmão. – As palavras
lutaram pra sair da boca enquanto lutava pra se manter lúcido. Os olhos
reviraram. Desfaleceu.
— Tem que parar com essa mania de ficar
desmaiando. Não sou nenhum burro de cargas né! – Disse Calus em tom de piada,
enquanto jogava o irmão nas costas para levá-lo de volta à cabana.
O sol já se punha há algum tempo. O cheiro do
assado recendia no local. Era um cheiro bom apesar de não ter sido temperado.
Ao lado da cama, sentado num toco velho, Calus velava Daro na cama sem
consciência enquanto pensava no que diria a ele quando acordasse. Ainda estaria
sem memória? Ou seria só um efeito colateral de dois dias desmaiado sem se
alimentar? Vai saber! O fato é que tinha que pensar em algo para falar com ele
em ambos os casos. A idéia de apagar tudo de ruim que havia acontecido não era
tão ruim, mas será que seria certo preencher a história de outra pessoa com uma
mentira? Seja lá o que fosse acontecer era melhor que acontecesse depois do
jantar.
— Melhor deixar esses dois maiores pra você
não é mesmo? Depois de quase três dias desacordado e comer nada, deve estar
faminto. –Falou consigo mesmo afastando um pouco os peixes do fogo, mas
deixando perto o suficiente pra mantê-los aquecidos.
Enquanto comia, a memória da prisão veio à
tona. As refeições intragáveis; a escuridão; as surras de vez em quando só pra
animar os guardas; as conversas com Doms, a sim! As conversas com Doms eram
sempre bem vindas (fora quando eram sermões), ele sempre sabia o que falar,
contava histórias, lugares por onde passou, e fazia os garotos refletirem e
imaginarem a vida fora de lá, quase como se já planejasse proporcionar essa
liberdade a eles. Agora tudo o que restara era a lembrança do velho. O coração
palpitou com o sentimento de perda, que levaram algumas lagrimas aos olhos. Sem
se dar conta, sua feição foi mudando, o ódio foi tomando conta do vazio deixado
por Doms, e a culpa recaiu sobre o mercado de escravos, que os mantivera
cativos e havia levado a morte do homem que era modelo para os garotos. “Vou
destruir aquele lugar por você Doms”, Pensou. Antes que pudesse pensar em mais
besteiras e envenenar ainda mais seu coração, vira Daro começando a despertar.
— Daro, tudo bem? – Questionou Calus
preocupado.
— Quem é você? – Retrucou Daro se encolhendo
para o canto da cama.
—Seu irmão... Calus. – Respondeu ainda ríspido
com a memória relembrada.
— Meu irmão? – repetiu confuso.
— Sim... Seu irmão... Não se lembra de mim? –
Perguntou se amolecendo um pouco.
— Desculpe. Não me lembro de nada além de uns
borrões e de ser carregado pela floresta. – Respondeu se conformando um pouco
com a situação. — O que aconteceu? – Questionou curioso pra saber o que o
levara a esse estado.
— Amanhã eu te contarei tudo. Hoje você
precisa comer. Há três dias que você não come nada. Melhor se alimentar.
Tome... Coma. – Proferiu entregando os peixes ao irmão faminto. Daro assentiu
com a cabeça e devorou a comida com avidez. — Vá dormir quando acabar, teremos
um dia longo amanhã. – Falou Calus se virando para o outro lado para dormir.
Daro terminou de comer e também se rendeu ao cansaço.
*E.5.:
Era dos 5
*1781:
ano
*2/1:
2° dia da 1° quinzena
*OUT.:
outono
Nenhum comentário:
Postar um comentário